Patrícia Amorim foi eleita presidenta do Flamengo. E essa é a questão. Não ouvi nem vi ninguém dizer ou escrever que ela foi eleita presidenta do clube. Os meios de comunicação preferem a concordância que exige uma ginástica mental danada de feia para dizer "a presidente" do Flamengo. É assim que tem saído nos jornais, é assim que se disse, por todos estes dias, na TV. Isso sugere a alguém desavisado que o substantivo presidente não tem feminino. Mas tem, sim, como está em todos os dicionários - e no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, publicação da Academia Brasileira que funciona como repositório oficial das palavras da língua. E lá aparece como verbete independente, como também no Houaiss e no Aurélio.
O Houaiss, feito sob a competentíssima direção do finado Antônio Houaiss, substituído depois por Mauro de Sales Vilar (cujas consoantes dobradas no meio dos dois sobrenomes ele próprio acha um excesso, como me disse num bilhete, por isso suprimo uma delas aqui, em ambos os casos), o Houaiss, eu dizia, tem lá no seu verbete presidenta um exemplo: "a presidenta da Nicarágua", o que não impede nossos jornais e revistas de tratar seguidamente a homóloga do Chile de "a presidente do Chile" (Michelle Bachelet).
Ora, se para primeiro-ministro temos primeira-ministra (caso atual da Alemanha), por que para presidente não teríamos presidenta?
"A presidente" é forma tão rebarbativa que chega a doer no ouvido, o leitor há de convir comigo, mas - devem raciocinar os que recorrem a tal esdrúxula concordância - é "sofisticado", é "diferente". Há de ser, sem dúvida. No mínimo temos aí alguma coisa muito enfeitada, como é enfeitada a geladeira que tem em cima um urso branco de louça.
As mulheres vêm sofrendo, através da história, com a permanente situação de inferioridade para a qual são calcadas pelos homens. Mas é tempo de reagir com grandeza, não como fez há tempos uma bobalhona nos Estados Unidos comandando uma grotesca queima de sutiãs. É tempo de reagir de maneira séria, exigindo, por exemplo, que os cargos importantes, os cargos cuja ocupação exige um comportamento digno (que o Governo do Distrito Federal não seja luz a iluminar esse caminho) tenham tratamento através do bom e velho gênero feminino.
Na Câmara, temos deputados e deputadas. No Senado Federal, senadores e senadoras. Mas, se a dignidade do cargo é extrema, como no caso de presidente da República, deixamos de ter presidente ou presidenta, o gênero de acordo com o sexo. Ficamos apenas com o masculino. A mensagem é clara, o sexo feminino não merece consideração que o leve a igualar-se ao masculino numa posição suprema: aí, então, o tratamento não pode mais ser feminino, tem de ser "a presidente", ainda que tal concordância quase nos quebre a língua.
Bem sabemos que não é só quanto a esse tipo de tratamento que a mulher sofre a imposição de uma suposta - e arbitrária - superioridade masculina. Lembremos a questão dos nomes próprios. Uma boa parte deles nasce de um nome masculino e só se torna nome de mulher quando recebe uma desinência feminina. Uma exceção é Mariana, que, como lembra Mestre João Ribeiro em suas "Curiosidades verbais", forma-se pela justaposição de Maria e Ana (Nossa Senhora e sua mãe). De Mariana é que nasceu o nome masculino Mariano. Mas esse é um processo raríssimo.
Entre os romanos eram de tal forma desimportantes os nomes de mulheres (como as próprias mulheres eram desimportantes, no âmbito doméstico) que costumavam ser apenas um diminutivo dos nomes masculinos. É ainda João Ribeiro a lembrar os exemplos: Messalina, do nome masculino Messala; Agripina, de Agripa.
Quem se chama Patrícia ainda tem sorte, não se trata de um diminutivo: é apenas o feminino de Patrício. Como se sabe, patrícios eram, por assim dizer, os nobres romanos, elite à qual se conferia alta dignidade, sobretudo a partir de Constantino. Do nome comum, designativo de classe, passou-se ao nome próprio, do nome próprio masculino fez-se o feminino Patrícia.
E estamos de volta a Patrícia Amorim, suas glórias em nossa natação, sua eleição recente para a presidência do clube mais popular do Brasil. Mãe de quatro filhos, é inaceitável que ela venha a ser designada pelos meios de comunicação através de um substantivo masculino, "a presidente do Flamengo", cargo que assume no próximo dia 21. Seria o caso de ela própria chamar a atenção dos repórteres recalcitrantes: "Por favor, mulher e mãe, tenho o direito de ser tratada por uma forma feminina. Sou presidenta do Flamengo, não sou presidente".
Chega de machismo gramatical.
MARCOS DE CASTRO é jornalista.
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