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domingo, 16 de maio de 2010

O equilíbrio da grafia


Especialistas apontam os principais problemas na escrita dos brasileiros e mostram que a falha na educação e as regras confusas não são pretexto para deslizes



A Copa do Mundo tem feito muito marmanjo torcer a pleno pulmão pelo hexa. Seja qual for o desempenho da seleção brasileira, no entanto, o mundial tem exposto - de forma indireta, é verdade - o descompasso do brasileiro com sua própria ortografia. Afinal, "hexa" é a versão gráfica da forma acústica /eza/, a mesma forma deslizante de enunciar a letra x de termos como "exame". Palavras iniciadas com e ou h + um som de /z/ + vogal, são escritas com x, daí "exumar", "hexágono", "exímio" etc. Mas no Brasil, a TV, o rádio e a publicidade têm consagrado "hexa" com a pronúncia bem mais rascante /heksa/, à maneira de quem diz "fixo".
Embora relativas à enunciação oral, hesitações do gênero mostram que, na base de nossa angústia com a escrita das palavras, há um abismo entre o que se diz e o modo como escrevemos o que se diz. Para especialistas, nossos mais comuns erros de ortografia são de natureza diversa dos causados pela adoção do novo acordo ortográfico. Muito além do curto-circuito entre o hábito aprendido e as mudanças da lei, as debilidades de nossa formação cobram seu preço.

Som e fala

O gramático Evanildo Bechara considera que muitos dos problemas de grafia se devam a confusões relacionadas à ortoepia, em particular à maneira como articulamos as vogais, e a tropeços de transcrição, em que um só símbolo gráfico (grafema) corresponde a vários sons usados na fala (fonemas), como o x de "hexa" (som de /z/), "caixa" ou "eixo" (som de /s/ após ditongo), "fixo" (de dois fonemas, /ks/), "exceção" (de dois fonemas, /sc/) e "máximo" (de /s/), e de muitos grafemas para um fonema, caso do /s/ escrito com c, ç, s, ss, sc, sç, x, xc ou z. 
- Nossa ortografia tem dois problemas insanáveis. Primeiro, a rica e difícil variedade de pronúncias de vogais no Brasil obriga que todos tenham bem fixa na mente a imagem gráfica da palavra. Do contrário, teremos dificuldade de saber, por exemplo, se "menino" é com e ou i na primeira sílaba, e com o ou u, na segunda. Em segundo lugar, há os casos em que se confundem os sons do x, de "exceto", do ch de "fechar" e do sc de "acrescentar", todos muito parecidos.
Professores do Sistema Anglo de Ensino, em São Paulo, chegaram a compilar até uma lista com problemas de grafia frequentes em redações de vestibulares. Há os problemas tradicionais de memória semântica ou sintática ("porque" junto ou separado, a escrita de "mal"/"mau", "há"/"a", "onde"/"aonde") e insegurança gráfica que leva à troca de letras (em casos como "exceção", "privilégio", "flagrante", "infringir", "admirar", "xícara" etc.).
Há também a falta de correlação visual ou de sensibilidade acústica na hora de localizar a sílaba tônica, quando não se determina com precisão a acentuação por falha de memória visual de palavras relacionáveis. Ocorre, por exemplo, quando se grafa "anônimato" (por comparação com o cognato primitivo "anônimo"), "espontâneidade" (devido a "espontâneo"), "essêncial" (de "essência"), "ingênuidade", "paciênte", "váriados".

Acentuações

Outros são os casos em que a confusão se dá por falta de sensibilidade acústica, o que leva a não se distinguir com clareza que sinal definir a escrita de "tambêm" e "alguêm", denunciando o quanto a pessoa escreve pelo olho, não pelo ouvido nem pelo cálculo. Uma outra categoria é a dos termos acentuados sem consciência do que se está fazendo. Daí "algúns", "álias", "cancêr", "chápeu", "avalia-lá" ou "ângustia". No caso, há a percepção de que um dado vocábulo tem acento, mas não se sabe bem em que lugar.
São comuns, também, ruídos entre parônimos, homônimos e homófonos, como "eminente" x "iminente"; "descrição" x "discrição"; "êxito" x "hesitar" (é comum grafar "exitar"). E problemas de segmentação: "de repente" grafado numa só palavra (derepente), "apartir de"; "partir-mos" (possível confusão com o infinitivo ou com o futuro do subjuntivo) e "fica-se" (confusão do imperfeito do subjuntivo com uma flexão reflexiva).

Vogais

Francisco Borba, autor de Dicionário Unesp do Português Contemporâneo, chama atenção para as dificuldades ligadas às consoantes mudas, em termos como "aspecto" e "estigma". Muitos, ao falarem, os enunciam com vogal e, ao escrever, tendem a reproduzir o que ouviram como se fosse uma transcrição fonética.
- Não é que o brasileiro esqueça que há ali uma consoante muda, mas ele simplesmente insere uma vogal onde não havia. Assim, "adaptar" vira "adapitar", "advogado" é escrito "adevogado" e vemos "estiguima" no lugar de "estigma" - diz o lexicógrafo.
Outro ponto de confusão viria da dificuldade de estabelecer regras de aplicação automática, desprezando a tradição, a maneira como sempre se escreveu uma palavra.
- Em muitos casos, é preciso seguir a tradição, que engana. Daí muitos não entenderem que "paçoca" venha com cedilha e não ss, pois assim são escritos os termos de origem indígena ou africana. Daí também nossas dificuldades de transcrição, a escrita com símbolos diferentes para sons idênticos, consolidar uma só forma de escrever termos homófonos, como "passo" (verbo "passar") e "paço" (palácio) - diz Borba.
Elis de Almeida Cardoso, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, da USP, escreveu para Língua, afirmando que há incoerências ortográficas que nem foram tocadas pelo novo acordo ortográfico, mas que saem caras para os brasileiros, como o h mudo de "hoje"; os s, ss, c, ç, sc, sç, x, xc e z com som de /ss/; os s, z e x com som de /z/; os x e ch com som de /ch/; os g e j com som de /j/. Atormentam o brasileiro diferenças como "estender" x "extensão"; "destro" x "dextrose"; "texto" (latim textus) x "misto" (mixtus); "em cima" x "embaixo".
Também professor da USP, Marcelo Módulo considera "normal" que haja uma distância significativa entre língua escrita e falada. Essa distância deve ser a base para a compreensão de nossos erros ortográficos.
- A língua escrita é representação da falada. Assim, sempre vão haver "problemas" ortográficos, pois ela nunca teve por objetivo espelhar a fala - diz Módulo.
Por mais que a ortografia se aproxime da fonética, por mais que a escrita lembre o som da palavra, há tantas variações regionais e temporais de pronúncia que a escrita será incapaz de dar conta das nuances, avalia Elis Cardoso. Para usar um exemplo caro à professora da USP, o que seria do português se o paulista grafasse "colégio" como "coléjo", o carioca "culégio" e o baiano "cólegio"? Módulo, no entanto, acha que certas regras contribuem para complicar a tensa relação entre fala e grafia.
- Bem, o emprego do hífen era complicado para os brasileiros. Acho que esse acordo conseguiu deixá-lo ainda pior - avalia.

Lei-problema

Para o gramático Bechara, a simplificação por soluções "mais lógicas" é muitas vezes inviável.
- Independentemente da solução dada, sempre que se abre uma porta fecham-se dez janelas. Afinal, não se escreve só para si, mas para os outros entenderem. Mas alguns ortógrafos querem resolver a coisa da pior maneira, representando cada fonema com uma letra. Assim, o fonema z passaria a ser representado sempre por z, tanto em "fazer" quanto em "caza" (casa). Essa aparente solução criaria problemas outros no campo lexical e semântico. E anularia a tradição - alega o gramático.
Para Ernani Pimentel, professor de português líder do movimento Acordar Melhor, de contestação ao atual acordo ortográfico, parte das dificuldades são provenientes da própria lei.
- Aparentemente as principais dificuldades ortográficas do brasileiro são o uso do hífen e das letras. Aparentemente. Na verdade, o principal problema ortográfico reside na falta de lógica e na indecisão que permeia o espírito de suas regras.
Um exemplo, diz Pimentel, está no uso do h mudo no início de palavras como "homem", "hoje" e "herege".
- Se a tendência tem sido eliminar da grafia as consoantes que deixaram de ser pronunciadas, por que não se elimina a letra h nesses casos? Por motivos etimológicos não faz sentido, pois a etimologia foi enterrada quando se retirou das escolas o latim. Por motivações semânticas não se justifica, pois a língua convive bem com homógrafos, como "manga" (camisa) e "manga" (fruta). Em segundo lugar, há contradições quando se escreve "anti-humano" e "desumano", com ou sem hífen e h, um exemplo apontando para a necessidade de preservar essa letra e outro para sua extinção. A lógica, que não pode faltar na didática, sob pena de torná-la ineficaz, indicaria ou só "anti-humano" e "des-humano" ou só "antiumano" e "desumano".

Sem lógica

Em ortografia, no entanto, muitas vezes o uso atropela as regras lógicas. Elis Cardoso lembra que o x, por exemplo, deve ser usado em palavras provenientes de línguas modernas, daí que a grafia de shampoo deveria ser "xampu", como está nos dicionários.  Não há, porém, nenhuma marca de "xampu" disponível nos supermercados. O cedilha deve ser usado em termos de origem tupi. A cidade paulista de Pirassununga, no entanto, não segue a regra.
Para José Carlos de Azeredo, professor-adjunto de língua portuguesa da Uerj e autor de Escrevendo pela Nova Ortografia e da Gramática Houaiss da Língua Portuguesa (ambos pelo Instituto Antonio Houaiss/Publifolha), a força do uso e a tradição justificam o h de "humano" ou o e de "menino", por exemplo. Embora mais lógica, a troca da convenção poderia criar novos complicadores.
- É preciso considerar a coerência gráfica de uma palavra em relação a suas derivadas. Não podemos, porque em muitas partes do país se diz "minino" e não "menino", fazer a troca, pura e simplesmente. Pois não pronunciamos /mininada/, que é uma derivada - diz o professor.
Não faria sentido grafá-las como pronunciadas porque não se ganha muito com isso, afirma Azeredo.
- Veja "coruja" ou "veludo", idênticos casos ao de "menino", em que os e e o na sílaba que precede uma sílaba tônica ganham som de i e u. Se mudássemos a grafia para "curuja" e "viludo", o que faríamos com "aveludado" e "corujice", em que e e o são pronunciados? Ninguém diz /aviludar/ - completa.
Para o professor da Uerj, nossas dificuldades ortográficas são tributáveis menos à ortografia do que a fatores pedagógicos, sociais, culturais e ao despreparo dos alfabetizadores.

- A verdade é que a ortografia do português é das mais simples, se comparada ao francês e ao inglês. O problema é da formação, não da própria ortografia. Muita criança aprende em casa uma maneira de pensar as palavras de modo muito diferente da apresentada na escola. Incorporaram "ferruge" e "garage" e não "ferrugem" e "garagem". Com um processo inadequado de alfabetização, podem não corrigir essas formas. A escola falha quando não promove o contato da criança com a leitura, que é o melhor modo de aprender toda grafia.

Francisco Borba considera que não há muito mais o que facilitar em nosso sistema ortográfico, mas com a escolarização ruim, o brasileiro escreve como ouve. Mudar a ortografia por formas "mais lógicas" que as aplicadas hoje seria uma "reforma radical" demais.
- Não só porque há muitos interesses comerciais, mas porque precisamos pensar na memória gráfica das gerações. A França não simplifica sua ortografia porque a tradição de livros por lá é grande. Uma reforma, pequena que seja, deve sempre considerar que em algum momento futuro as gerações devem dispor de acervos que possam entender, sem o risco de mudanças gráficas tão agressivas que atrapalhem o entendimento sobre textos antigos.

Enxugamento

Como a ortografia está ligada à história da língua, não poderia mudar a todo momento por questão de economia e dos aparatos da memória coletiva. Professores como Ernani Pimentel consideram, no entanto, que é preciso "enxugar" as regras, mudar paradigmas para entender-se e não se decorar a ortografia.
- O que precisa mudar é o espírito das regras para que não sejam decoradas, mas entendidas e apreendidas logicamente. É necessário que se organize um mínimo de regras, talvez um quarto das atuais, que sejam concatenadas, sem exceções nem duplas grafias - diz Ernani.
Já Módulo considera que a reforma foi tímida, mas dificilmente seria possível algo mais amplo.
- Para que a reforma fosse mais ampla, seria necessário fazer mudanças que pouca gente aceitaria, como a unificação da grafia de alguns fonemas: "jeleia", "jente", "sidade", "sitar", "xuva", "xope". Aí, sim, facilitaríamos a ortografia; entretanto, esbarraremos sempre na questão da tradição gramatical - diz Módulo.
Já Bechara admite que, embora a lei tenha trazido "mais racionalização" e há "mais qualidade que defeitos" nela, "se dependesse dele", simplificaria a lei, em particular as exceções do uso do hífen.
- Por que escrever "cor-de-rosa", com hífen, e "cor de laranja" sem?
Bechara, no entanto, diz que ninguém conseguiria consenso numa reforma de ortografia, ainda mais que se pretenda comum a outros países, e nenhuma lei ortográfica evita problemas ligados às deficiências escolares de um país.
- Nenhum acordo resolve todos os problemas da escrita, primeiro porque o alfabeto herdado do latim não atende à representação de certos fonemas criados nas línguas modernas, que não existiam em latim.
É o caso, diz Bechara, das palatais lh, ch, nh. As línguas românicas tiveram de lutar muito tempo sobre como representar esses fonemas. Até a invenção da imprensa, o nh era representado por nn, um n pequeno sobre a letra n, que se transformou no til. O fonema sibilante c (sem o som de q) era indicado por um cezinho abaixo do c, que virou o cedilha. Diferentemente do espanhol, o português adotou o sistema provençal sinalizado por nh, ch, lh. Na passagem para o português, as vogais e e o ganharam timbres aberto e fechado. O espanhol acabou ditongando a vogal aberta (português "porta", espanhol puerta).

Perfeição

Isso tudo dificultou a transliteração das palavras. Sem falar nos sinais de pontuação, que são sinais subsidiários; na contribuição do grego, com a representação de certos fonemas gregos (como o ph de philosophia e o sc inicial de sciencia), e nas diversas reformas, que ora puxavam a brasa para a origem das palavras, ora para a da fonética, criando tradições pétreas na forma de grafar o vocabulário nacional.
- Com um legado desses, nunca uma reforma ortográfica será perfeita - diz Bechara.
Pode ser. Mas nem tanto a César nem tanto a Barrabás. A reforma ortográfica é melhor do que seus críticos a pintam e pior do que os adeptos defendem. A debilidade educacional brasileira não pode mascarar a ineficiência de uma mudança nem a reforma pode ser deixada de lado por ser menos "lógica" do que deveria. Mas um equívoco ortográfico tem a propriedade de afetar a imagem social de quem escreve. O cuidado de escrever diz respeito, em última análise, a quem põe a cara a bater. O sujeito pode pôr a culpa na lei ou no Estado. Tudo bem. Mas deve pensar duas vezes antes de tributar a fatura.

Luiz Costa Pereira Junior

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