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quarta-feira, 21 de abril de 2010

O GÊNERO DA NATUREZA



A confusão entre gênero gramatical e sexo influencia nosso imaginário e as representações culturais que fazemos no dia-a-dia

O gênero é, ao lado do número, uma das categorias gramaticais mais próximas da universalidade. Tanto que a maioria das línguas a tem. Mas se o número pode, de algum modo, expressar propriedade física objetiva (a quantidade), o gênero só faria sentido se estivesse relacionado apenas a seres sexuados. Daí a associação, muitas vezes errônea, que se faz entre gênero gramatical e sexo.
Afinal, seres animados do sexo masculino, em especial humanos, costumam ser designados por substantivos masculinos, e seres animados do sexo feminino, por substantivos femininos. Há contra-exemplos que conturbam essa aparente lógica: em alemão, por exemplo, a palavra Mädchen, “moça, menina”, é do gênero neutro.
Então, por que a maior parte das línguas tem gêneros? É verdade que há línguas, como o húngaro, o finlandês, o japonês e o malgaxe, que não têm, e isso aparentemente não lhes faz falta. Diante disso, qual a utilidade prática da classificação dos seres em categorias como masculino, feminino e neutro?
A origem dos gêneros gramaticais remonta a tempos imemoriais e a línguas pré-históricas das quais não temos registro. Talvez as primeiras línguas, logo que o Homo sapiens começou a falar de modo articulado, já apresentassem tal categorização. Só o que sabemos é que as línguas atuais com gêneros os herdaram de suas ancestrais. Não dá para saber se línguas modernas sem gêneros derivam de outras que também não os tinham ou se essa distinção se perdeu em algum momento de sua evolução.
Estamos tão acostumados a associar gênero e sexo que até mesmo os termos gramaticais “masculino” e “feminino” remetem aos conceitos de macho e fêmea (respectivamente, mas e femina em latim). Mas há uma diferença crucial entre o gênero gramatical e o natural ou semântico, este ligado à sexualidade do objeto. Pode-se comprovar o fato observando que diferentes línguas comportam diferentes sistemas de gêneros, das que não têm, passando pelas que têm dois (português) ou três (inglês), até quatro gêneros, como o sueco.


Cinco gêneros

Em português, temos os gêneros masculino e feminino. Portanto, os substantivos de nossa língua pertencem a um ou outro desses gêneros e são substituídos pelos pronomes pessoais “ele” ou “ela” (o uso do pronome “isso” em alguns casos revela reminiscências de um antigo gênero neutro, mas “isso” não é pronome pessoal) e, principalmente, precedidos dos artigos definidos “o” ou “a”. Como resultado, seres inanimados como “lápis” e “caneta” são tratados lingüisticamente como se tivessem sexo, e seres animados como “águia” e “testemunha”, como se não tivessem. O gênero natural está ligado a dicotomias semânticas como animado / inanimado, sexuado / assexuado, macho / fêmea e espécime / espécie. Trata-se de classificação fundada nos aspectos físicos e biológicos dos seres. Desse ponto de vista, os gêneros naturais são cinco:

Masculino (seres animados do sexo masculino) – Pai, menino, Joãozinho (O meu cachorro se chama Toby);

Feminino (seres animados do sexo feminino) – Mãe, menina, Mariazinha (A minha cadela se chama Viki);

Neutro (nem masculino nem feminino, para seres inanimados e abstratos) – Caderno, felicidade (Aração dos cachorros acabou);

Sobrecomum (masculino ou feminino, para seres animados cujo sexo não está determinado) – Criança, testemunha, vítima (animal que vi estava ferido);

Complexo (masculino e feminino, para coletivo de seres animados de ambos os sexos): Ser humano, humanidade (cão é um animal mamífero).
Algumas línguas adotam um sistema de gêneros dito “natural”, fazendo corresponder ao masculino e feminino semânticos o masculino e feminino gramaticais, e atribuindo aos demais gêneros semânticos o neutro gramatical. Todavia, mesmo essas línguas têm exceções. Em inglês são neutros todos os substantivos relativos a seres inanimados, com exceção dos navios, automóveis, aviões e máquinas em geral, que são femininos. Essas exceções têm a ver, em muitos casos, com uma visão de mundo particular da sociedade.

Visão de mundo

Se, em princípio, seres sexuados conduzem a uma coincidência entre o gênero gramatical e o natural, a coisa se complica em línguas de povos que classificam as coisas do mundo segundo uma visão mítico-religiosa ou metafísica.
Em latim, as árvores tinham nomes femininos por serem associadas à figura materna que gera a vida (isto é, dá frutos). Em muitas línguas, predomina uma visão animista do Universo, segundo a qual todas as coisas têm vida e alma, daí terem um gênero animado e por vezes sexuado. Entre certos povos, a palavra para “moça” é neutra, tornando-se feminina no momento em que a jovem concebe. Nessa visão de mundo, a mulher só é vista como tal quando cumpre seu papel procriador.
A atribuição do gênero gramatical às palavras é arbitrária porque não parte, em geral, da análise semântica (gênero natural), mas de uma herança histórica, por vezes transtornada por mutações aleatórias ao longo da evolução. Assim, o latim calor era masculino; em português, seu descendente “calor” manteve o gênero, mas em francês chaleur é feminino. Há exemplos semelhantes: português “costume” (masc.) x espanhol costumbre (fem.); português “flor” (fem.) x italiano fiore (masc.). “Vinho” é masculino em português, francês (vin), alemão (Wein) e grego (oînos), e é neutro em latim (vinum), inglês (wine), sueco (vin) e russo (vino).
Em alemão, as palavras diminutivas com sufixos ‑chen e ‑lein são neutras, não importando o gênero da palavra primitiva. Em inglês, quando se sabe o sexo do animal, é normal referir-se a ele por he ou she; quando não, usa-se o neutro it. A arbitrariedade do gênero gramatical já suscitou até críticas como a de Protágoras, para quem o grego era língua enganosa, em que palavras “viris” como “capacete”, “coroa” e “cólera” eram femininas.
O fato é que o gênero gramatical das palavras influencia o imaginário de tal forma que as representações culturais que fazemos refletem a confusão entre gênero e sexo. Nas histórias infantis, o Sol é homem e a Lua é mulher em línguas como o português e o espanhol, em que as palavras para Sol e Lua pertencem a esses gêneros. No imaginário alemão, o Sol é mulher e a Lua, homem, porque a palavra para Sol, Sonne, é feminina, enquanto a para Lua, Mond, é masculina. Em inglês, a figura da Morte é homem; já em português é mulher. O inglês usa expressões como mother nature (mãe natureza) e mother language (língua-mãe) por pura imitação das línguas românicas, notadamente o francês, pois em inglês nature e language são palavras neutras.

Arbitrário

Há outros aspectos sobre gênero. Em primeiro lugar, há uma relação entre animado e agente, bem como entre agente e sujeito. Por isso, nas línguas indo-européias, substantivos animados, que podem exercer a função de sujeito da oração, costumam ter formas distintas no caso reto e no oblíquo, enquanto os inanimados têm uma só forma em ambos os casos.
Em latim, dominus (senhor), é sujeito e dominum, objeto direto; já templum pode ser sujeito e objeto. No inglês, os pronomes pessoais masculinos e femininos têm formas para sujeito e objeto (he / him,she / her), mas o neutro tem uma só, it.
Em segundo lugar, muitas línguas associam o feminino ao coletivo. Em árabe, o plural de “juiz” significa igualmente “magistratura”. Em grego, o neutro plural faz concordância no singular, como se fosse coletivo: to grámma estìn, “a letra é”; ta grámmata estìn, “as letras são” (literalmente, “as letras é”). Parece que em grego ta grámmata é entendido tanto como “as letras” quanto “o alfabeto”. Não por acaso, muitos coletivos em português são femininos (mulherada, bicharada). Em italiano, algumas palavras masculinas fazem um plural feminino: ginocchio / ginocchia, “joelho(s)”, uovo / uova, “ovo(s)”, e assim por diante.
Ao menos no indo-europeu, a distinção de gênero mais importante era entre “animado” e “não-animado”; a oposição masculino / feminino seria detalhamento da classe “animado”. Daí surgirem os três gêneros da maioria das línguas indo-européias: masculino, feminino e neutro. Este, por sinal, tem seu nome derivado do latim ne uter, “nem um nem outro”.
Militantes contra o preconceito de sexo – erroneamente chamado de “de gênero” – acusam as línguas de ter pronomes “sexistas” e exigem mudança até no texto da Bíblia (frases como “nem só de pão vive o homem” seriam machistas). Tudo porque a evolução fonética fortuita tornou masculinas palavras neutras. E porque a confusão entre gênero gramatical, natural e sexo biológico, estimulada pela adoção de termos gramaticais inadequados, está enraizada em nossas crenças sobre a natureza da linguagem.

Publicado em Língua Portuguesa, ano 3, n.º 32, junho de 2008


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