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sábado, 21 de novembro de 2009

A hora da gramática

Como evitar que o estudo da gramática se dissipe num conjunto de regras sem sentido

A fala é suficientemente marcada por peculiaridades, e exigir dela o que se espera da escrita é um equívoco

Olhando uma gramática com cuidado, pode-se ver que se trata de um volume muito heterogêneo. Ele contém: a) regras a ser seguidas para praticar um desejável padrão linguístico (ortografia, pronúncia, concordância e regência são os casos mais óbvios);
b) um conjunto de análises ou de apresentação de aspectos estruturais da língua (tipos de sons, sílabas, classes de palavras, morfologia, sintaxe);
c) um conjunto de indicações de comportamentos sociais (evitar regionalismos e estrangeirismos, não ser grosseiro), intelectuais (ser claro), quase morais (evitar cacofonias), etiquetais ("ele e eu", não "eu e ele").

O esboço, precário, permite ver que a questão "estudar gramática" só é simplificada por falta de conhecimento ou boa-fé. O que mais interessa, do ponto de vista da sociedade, sendo conservador, é o domínio escrito de uma norma - que talvez devesse ser representada pelos jornais e revistas e não pela literatura. O pedaço da gramática que mais interessa é o que diz respeito a como se pode e/ou não escrever. Uma observação cuidadosa mostraria que a fala é suficientemente marcada por peculiaridades, e exigir dela o que se espera da escrita é um equívoco. Um exemplo pode vir da comparação da escrita de colunistas que também falam em rádios e TVs.


Hora agá


A experiência mostra que esse domínio deriva de práticas (leitura, escrita, observação da escrita, revisão - própria e alheia) e quase nada de estudos "teóricos". O melhor exemplo é o dos que escreveram antes de haver gramáticas das línguas em que escreveram. Os clássicos gregos são o melhor exemplo, talvez, mas Camões também vale.

Para evitar equívocos possíveis, proponho que a escola tenha sua "hora de gramática", como tem a de leitura (que deveriam ser mais numerosas, aliás). Mas o que se faria nessas horas? Não se trata de ensinar português: nem a falar, nem a escrever, nem a ler. Mas pensar sobre a forma do idioma, mostrar como a língua é "por dentro", como é sua estrutura, como funciona, é "criativa" e viva. Diz-se que os alunos pouco gostam das aulas de gramática, artificiais e desligadas da realidade. Ora, elas não precisam ser assim. Podem ser ligadas à vida (à nossa e à da língua) e agradáveis.


Três atividades


Para isso, proponho três tipos de atividades ligadas à língua viva. O primeiro consiste em analisar piadas. Quem leu de Freud ao menos o livro sobre chistes terá percebido que, para poder sustentar sua teoria, ele propõe análises linguísticas sem as quais sua tese da relação delas com a linguagem dos sonhos seria puro palavrório. O que importa é a técnica, diz Herr Sigmund. Vejamos um exemplo (que não é dele):


O Fulano vai ao cinema. Chega cedo. Precisa ir ao banheiro. Vai e, quando tenta voltar à sala, percebe que está trancada. Mas há um buraco na porta, pelo qual pode ver o filme.
Como se chama o filme?
- Vida privada.

A aula consistiria em, depois da risada (sintoma de que a sequência é corretamente analisada), explicitar o que aí ocorre. Ao menos:


a) a sequência pode ser lida de duas maneiras: 1) "vida privada" e 2) "vi da privada";
b) "Vida privada" parece mais nome de filme do que "Vi da privada" (mas isso interessa menos, pois estamos ante uma piada e não um capítulo da história da 7a arte);
c) "Vida privada" e "vi da privada" são distinguidas pela diferença de acento da sílaba da (final de "vida" ou início de "da privada");
d) "vi da privada" significa "(eu) vi (o filme) da privada", ou seja, que dois elementos cruciais para a interpretação são elípticos, mas todo mundo sabe que estão lá.


Professores e alunos "ligados" perceberão fenômenos semelhantes em diversas piadas e na fala cotidiana (pena que um livro de piadas tenha sido retirado da lista da Secretaria de Educação de São Paulo, porque piadas são excelente material "didático", tanto para discutir questões de língua quanto sociais).


Estrangeirismo


O segundo tipo de atividade consiste em analisar neologismos e estrangeirismos. Os dois temas permitem debate sobre o que é uma língua nacional e sua relação com as novidades culturais - vindas de fora ou de dentro. Mas a ênfase que sugiro é relativa aos aspectos gramaticais.

Os estrangeirismos mostram como a língua é forte, como sua gramática se impõe às palavras estrangeiras. Veja-se como pronunciamos e-mail (iméiu), hot-dog (roti-dogui), marketing (marquetchim), set (setchi), snob (esnobe) etc., e ficará claro que não estamos importando inglês, mas fortalecendo o português (outra coisa é o que ocorre com nossa cultura e mentalidade...).

Sem contar que todos os verbos importados se tornam verbos regulares da primeira conjugação: printar, estartar, inicializar, glugar etc. Não é pouco! Observe-se o que ocorre com os neologismos: sempre a gramática se revela fortíssima (se você gosta das palavras novas ou não, é outra coisa): "alavancar" e "(des)catracalizar" são só exemplos.


Gerundismo


O terceiro tipo de atividade diz respeito à observação de um fenômeno muito criticado, o dito gerundismo. Uma lista dessas formas mostra um fenômeno curioso: sempre há verbo auxiliar ("posso", "vou"), seguido do "estar" no infinitivo, e de outro no gerúndio ("vou estar enviando", "posso estar enviando"):
a) nunca são criticadas construções como "vou ficar esperando / vou continuar trabalhando", em que não ocorre o verbo "estar".
b) o primeiro verbo é sempre flexionado (concorda com o sujeito: "vou", "posso", "vai", "pode", "vamos", "podemos"), o segundo ("estar") está sempre no infinitivo e o terceiro, sempre no gerúndio.
Em qualquer construção com auxiliar + verbo, o segundo verbo está sempre no infinitivo ("vou dormir", "pode deixar", "devo partir"), pois "estar" exige gerúndio ("estou dormindo", "sonhando"): ou seja, a sintaxe (a gramática) do dito gerundismo é absolutamente regular!

Aulas (de economia, história, direito, genética) devem considerar os fatos que estão ocorrendo. Se não, parece que uma coisa está nos livros e outra é o que ocorre no mundo. O mesmo deveria acontecer no tratamento da língua. Com a vantagem de poder mostrar aos alunos o que é de fato uma gramática: o que faz uma língua ser uma língua.


Sírio Possenti é professor associado do departamento de linguística da Unicamp e autor de Os humores da Língua (Mercado de Letras)

http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=11836

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