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terça-feira, 20 de julho de 2010

UMA CRÔNICA GRAMATICAL

Levantei-me mal-humorado e uma crase sonolenta (teimosa, humilhante e inconveniente como sempre) arrastou-me à toalete matinal. Encarei o espelho, vi-me como um objeto direto reflexivo e não gostei do meu rosto, aquele objeto indireto amassado e intumescido pela ressaca. Lá no quarto, numa cama quentinha, dormia intransitivamente minha mulher ( sem dúvida o mais belo e perfeito substantivo ): o corpo bonito e macio, os cabelos negros e perfumados, o sono tranquilo e justo, enfim, com todos esses adjuntos adnominais que, inexplicavelmente, os maridos (jumentos insensíveis) ignoram.
Naquele momento, frente ao espelho, eu me odiava porque, na noite anterior, perdera como o mais-que-perfeito dos idiotas tudo o que havia ganhado no mês. Enquanto escovava os dentes, eu escolhia (para mim mesmo) alguns adjetivos – imbecil, dissipador, pródigo, párvulo, inconsequente -, como também alguns substantivos epicenos – anta, jegue, socó, ameba -, mas tudo aquilo não passava de um demonstrativo neutro, pois meus remorsos pediam um castigo maior, uma autoflagelação islâmica.
Meu caráter deficiente, defectivo não conseguia reaver minha autoestima. E o pior, eu não tivera coragem de contar tudo à minha mulher – a mulher é o nosso complemento nominal¸ mas eu tivera medo da verdade, da realidade!
Comecei, então, a repassar o que ocorrera na noite anterior.
Bem, à noite – essa locução feminina tão romântica, mas tão traiçoeira – o Osmar, um velho amigo, convidou-me para uma cervejinha. No bar, ele apresentou-me uma linda mulher, com predicativos fantásticos: era bonita, inteligente e sensual. Fomos para um boliche, embora ( sem concessões ) eu odeie boliche e apostas. A mulher, contudo, era irresistível, tinha o poder da sedução, do amor, do amar – esse verbo transitivo direto. Era isso que ela era: sem rodeios, sem preposições – objetiva e direta!
Eu disse que não gostava de boliche e apostas. Ela fez beicinho, arrebitou o narizinho...e convenceu-me. E toda vez que me negava a apostar, havia a interferência do impessoal Osmar: ele era assim, não concordava com ninguém. E como haveria de concordar se seu próprio nome era um erro de concordância? Por que Osmar, e não Os Mares?
Via-se, como um sujeito passivo que eu sempre fui, que a mulher dominara-me completamente. A cada aposta, meu suado dinheiro era transferido para a sua bolsa.
Agora, às 7 da manhã, aqui neste banheiro, estou acuado: chove lá fora, mas meus credores são inflexíveis como os verbos impessoais e me esperam. Sem dinheiro e cheio de credores, eu estou indeciso, sem poder determinar o que farei. Dizem por aí que sou um sujeito indeterminado, indeciso.
Como disse no início desta narrativa, sou um ser deficiente, defectivo: nunca me precavi. Perdi tudo, tudo mesmo! Fui a bancarota, fui a falência – perdi até as crases... 


http://www.meionorte.com/pauloroberto,uma-cronica-gramatical,101661.html

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