Muita gente ainda confunde a redundância estilística com o vício de linguagem, mas é possível usar com requinte a repetição de palavras numa frase
Certa feita, Vicente Matheus (1908-1997), ex-presidente do Corinthians (aquele que agradeceu à Antárctica as Brahmas recebidas), estava com um olho meio inchado quando encontrou um amigo, que lhe perguntou:
- O que você tem no rosto?
- Estou com terçol no olho! - respondeu-lhe Vicente Matheus.
- Mas... "terçol no olho" é pleonasmo! - retrucou o amigo, em seguida.
Mais adiante, Matheus encontrou-se com um conhecido que lhe fez a mesma pergunta.
- Já não sei mais - disse-lhe Matheus. - Uns dizem "terçol"; outros, "pleonasmo"...
O anedotário sobre Vicente Matheus pode não passar de lenda, mas mostra como é popular o nome de uma figura de sintaxe tomada quase sempre como vício de linguagem: o pleonasmo. As pessoas o reconhecem, convivem com ele e, como o interlocutor de Matheus e quase todo ouvinte da piada, chegam a saber até seu nome técnico, embora desconheçam o de outros fenômenos da língua.
Paradoxal popularidade: o pleonasmo ainda confunde e é um ilustre desconhecido de muitos brasileiros. Ainda mais quando usado com estilo, como por escritores, publicitários e todo tipo de comunicador - está presente, por exemplo, até no título da novela das oito, da rede Globo, Viver a Vida, do autor Manoel Carlos. - O que você tem no rosto?
- Estou com terçol no olho! - respondeu-lhe Vicente Matheus.
- Mas... "terçol no olho" é pleonasmo! - retrucou o amigo, em seguida.
Mais adiante, Matheus encontrou-se com um conhecido que lhe fez a mesma pergunta.
- Já não sei mais - disse-lhe Matheus. - Uns dizem "terçol"; outros, "pleonasmo"...
O anedotário sobre Vicente Matheus pode não passar de lenda, mas mostra como é popular o nome de uma figura de sintaxe tomada quase sempre como vício de linguagem: o pleonasmo. As pessoas o reconhecem, convivem com ele e, como o interlocutor de Matheus e quase todo ouvinte da piada, chegam a saber até seu nome técnico, embora desconheçam o de outros fenômenos da língua.
Estilo
A edição de dezembro (Língua 50) trouxe uma entrevista com Paulina Chiziane, a primeira romancista de Moçambique. A uma das perguntas, a escritora respondeu: "Se você for ver, a maior parte das coisas que escrevo eu não as inventei."
Percebe-se claramente - mesmo na linguagem oral - que a autora substituiu a palavra "coisas" pelo pronome átono "as", usando a chamada pro forma pronominal, elemento típico de coesão referencial.
Tivesse a entrevistada moçambicana, numa só oração, respondido: "A maior parte das coisas eu não as inventei", teria empregado um objeto direto pleonástico, substituindo o objeto direto inicial por um pronome oblíquo átono.
Inicialmente, não se trata do vício de linguagem denominado "pleonasmo vicioso" (redundância ou tautologia), com a repetição de ideias mediante o uso de palavras ou expressões distintas, o que nada acrescentaria à força da expressão, resultado da ignorância do sentido exato dos termos empregados.
Analisemos as frases:
"Fazer uma breve alocução."
"Transmitir novidade inédita."
"Ser o principal protagonista."
Em todas elas percebemos que o adjetivo representa uma demasia condenável: "alocução" é um" discurso breve"; não há "novidade" que não seja "inédita"; e "protagonista" já significa "principal personagem".
Vício
O cantor Raul Seixas fez muito sucesso com a música que se iniciava assim: "Eu nasci / há dez mil anos atrás", letra de Paulo Coelho, que, conscientemente, empregou o verbo "haver" indicando passado e o advérbio "atrás" marcando uma terrível redundância.
As gramáticas normativas da língua portuguesa, no entanto, distinguem dessas redundâncias viciosas o emprego do adjetivo como "epíteto de natureza", em expressões como "céu azul", "fria neve", "noite escura".
Relembremos os conhecidíssimos versos de Fernando Pessoa:
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal
Aqui não se trata de inútil reiteração de ideia que já se continha no substantivo. O adjetivo insiste sobre o caráter intrínseco, normal ou dominante do objeto.
É uma forma de ênfase, um recurso literário.
Como distinguir? Pleonasmo é o emprego de temos desnecessários, cujo objetivo é enfatizar a comunicação. Pode ser semântico ("Ver com os próprios olhos") e sintático ("A mim isso não me interessa"). O pleonasmo só é figura de linguagem, ou seja, só possui valor literário, quando a repetição tem finalidade expressiva, quando traz objetivo estilístico.
Semelhante exemplo encontramos no poeta parnasiano Alberto de Oliveira:
Iam vinte anos desde aquele dia
Quando com os olhos
eu quis ver de perto
Quanto em visão com os
da saudade via.
No Parnasianismo, havia uma certa preocupação com a forma, com as rimas, o que fez o poeta enfatizar a sua ideia, não só repetindo "quis ver com os olhos", como também empregando a inversão (nos dois últimos versos) e a zeugma (com a omissão de "olhos", no último verso).
Os portugueses costumam empregar esse mecanismo sintático. Vejamos outro exemplo de Pessoa:
Vivo sempre no presente.
O futuro, não o conheço.
O passado, já o não tenho.
Do ponto de vista estilístico, é elegante, e é também enfático, repetir-se um desses termos, por meio de um pronome pessoal oblíquo átono, quando eles se antepõem ao verbo. Tal fato constitui uma das modalidades da figura de sintaxe chamada pleonasmo.
Encontramos essa figura, na área da sintaxe, com os complementos associados ao verbo (objeto direto e objeto indireto).
- Objeto direto pleonástico - O objeto direto é o complemento que se liga diretamente ao verbo, sem auxílio de preposição: "Queremos políticos honestos! Os políticos desonestos, já não os queremos mais!"
Nota-se que o objeto direto "Os políticos desonestos" foi substituído pelo pronome átono "os", tendo este a função de objeto direto pleonástico.
Outro exemplo:
"Palavras cria-as o tempo e o tempo as mata". (José Cardoso Pires)
O objeto direto pleonástico pode também ser constituído de um pronome átono e de uma forma pronominal tônica preposicionada:
"A mim, ninguém me espera em casa". (J. Régio)Outro exemplo:
"Palavras cria-as o tempo e o tempo as mata". (José Cardoso Pires)
O objeto direto pleonástico pode também ser constituído de um pronome átono e de uma forma pronominal tônica preposicionada:
Um dos processos utilizados para realçar o objeto direto consiste em colocá-lo no início da frase, repetindo-o depois com a forma pronominal:
"Sorte, desejo-a toda para mim".
Com o mesmo objetivo, o pronome lhe(s) pode refletir o objeto indireto expresso por um sintagma nominal inserido no início da frase, como acontece no provérbio:
"Ao homem mesquinho basta-lhe um burrinho".
- Objeto indireto pleonástico - O objeto indireto é o complemento que se liga indiretamente ao verbo, com auxílio de uma preposição: "Não peço nada ao avaro". Este último termo é um complemento do verbo "pedir" (quem pede, pede alguma coisa a alguém) com a preposição a, funcionando, portanto, como objeto indireto.
Novela
Ao iniciar a oração com o objeto indireto e substituindo-o por um pronome átono, obtém-se o objeto indireto pleonástico:
"Ao avaro, não lhe peço nada."
No exemplo: "Aos agiotas nada lhes devemos.", temos a presença do objeto indireto "Aos agiotas", do objeto direto "nada" e do objeto indireto pleonástico formado pelo pronome átono "lhes".
- Objeto direto interno (ou intrínseco) - Como estamos analisando as repetições de palavras na oração, há também um caso típico de objeto direto - muito explorado pelos escritores -, que não incorre numa redundância, uma vez que ele traz necessariamente um adjunto; é um complemento verbal cujo núcleo possui o radical idêntico ao do verbo da oração.
Trata-se do objeto direto interno:
"Boas criaturas jamais sonham sonhos ruins".
"Eles sempre gostavam de voar voos altíssimos".
No poema romântico I-Juca Pirama, o poeta Gonçalves Dias escreveu "Morrerás morte vil da mão de um forte", em que o objeto direto interno foi usado para reforçar o conceito expresso pelo verbo e, sobretudo, o poeta maranhense preocupou-se em demonstrar a agonia dos momentos que antecedem a morte.
É muito importante que as pessoas saibam distinguir as redundâncias, evitando-as na linguagem oral e escrita, do pleonasmo criado como estilo. A novela global Viver a Vida não traz uma tautologia (dizer a mesma coisa com outras palavras)!? Portanto, devem-se usar os pleonasmos (sintáticos e semânticos) como recurso expressivo, enfático, com a certeza de que não só trarão beleza ao texto, mas também correção e ênfase, como sempre fizeram nossos melhores poetas e prosadores.
Luiz Roberto Wagner
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