Sinal com maior variedade de uso é desafio para o entendimento de um texto | ||
O contrário ocorre com a vírgula, cuja variedade de emprego é um desafio constante. Já por isso, quando a tratam como parte igual do conjunto, não dando o devido desenvolvimento a seu estudo, alguns autores pecam por omissão, pois, na verdade, o conjunto é quase inteiramente ocupado pela vírgula. Uma prova? Quantas vezes ela aparece no parágrafo acima? 14. E quantos pontos? 5. Não há dúvida: a vírgula, carro-chefe de todos os pontos, reina soberana em qualquer texto. Até mesmo os poemas em versos livres da fase revolucionária do Modernismo, que tentaram prescindir da pontuação, jamais conseguiram eliminá-la. Para que serve o ponto, mesmo? Para fechar período, fechar parágrafo, fechar texto. E acabou. É apenas um assistente: quando a vírgula vai embora, o ponto fecha a porta. Para que serve o ponto de interrogação? Para marcar frases interrogativas. Mas o pobre nem consegue distinguir interrogação total de interrogação parcial. E para que serve a vírgula? Nem ela mesma, se pudesse responder, teria certeza total de quantas funções pode exercer, sintáticas, lógicas, estilísticas. Uma enormidade. Mais uma prova? Quantos livros existem dedicados ao ponto, ou ao ponto de interrogação? Nenhum, porque não há mais que dois ou três parágrafos a escrever sobre eles. E sobre a vírgula? Artigos, capítulos de livros, livros inteiros. Por isso, se ela pudesse falar, diria que um livro com um nome ao estilo de Manual de Pontuação seria impróprio e incoerente: por mérito e justiça, deveria ser substituído por Manual de Virgulação. Falar dos outros sinais é, de certo modo, fazer a introdução ao que se vai falar da vírgula. Personalidade Assim, não seria possível revelar todo o poder da vírgula em poucas linhas.
"Sou a única presença feminina autêntica na pontuação. Certo pesquisador pretensioso anda dizendo que sou sinuosa, insinuante e traiçoeira. Para falar a verdade, sou mesmo. Minhas curvas suaves me fazem bela, minhas funções me tornam insinuante, minhas virtudes estilísticas me tornam, não digo traiçoeira, mas um tanto oblíqua e dissimulada, como a Capitu. Então, para ter todos os privilégios de minhas prendas, se quer ser mesmo um bom escritor, seja um pouco o meu Bentinho e um pouco o Escobar. Só quem sabe todas as manhas e malícias do feminino pode desfrutar ao máximo os meus poderes. Machado sabia". As 10 habilidades básicas das vírgulas
1 Pausa inconclusa Quando surge na escrita, marca uma pausa inconclusa na fala. Exemplo: "Quando surge na escrita, marca uma pausa inconclusa na fala".
Opera sempre na oração, marcando fronteiras entre orações ou entre elementos oracionais. Exemplo em que surge com seu charme todo:
A vírgula sinaliza séries de vocábulos, de termos, de orações: "Preguei, demonstrei, honrei a verdade eleitoral, a verdade constitucional, a verdade republicana" (Rui Barbosa, "Oração aos Moços").
A vírgula marca bem a intercalação de elementos na oração, mas não reclama se o escritor por vezes usar para isso travessões ou parênteses: "Pode-se dizer, sem a menor sombra de dúvida, que a vírgula é - e não por acaso - o corpo e a alma da pontuação".
Sinaliza com eficácia a transposição enfática de um elemento do meio ou do final de uma oração para o início, ou do início para o final: "Ingênuo, o Inácio nunca foi. - Era um sujeito de fala mansa e longas dissertações, o Inácio."
6 Colaborar com a elipse
"Aqueles são a parte da natureza. Estes, a do trabalho" (Rui Barbosa, Oração aos Moços) 7 Ser, muitas vezes, facultativa
8 Ser lógica e articulada Não se presta a separar o inseparável. Assim, nada de pô-la entre sujeito e predicado ou entre verbo e seu objeto. Não "Pedro, compra livros" ou "Pedro compra, livros" quando se quer "Pedro compra livros". Se há aposto, pode-se tê-la duas vezes, antes e depois, para marcar o fato: "Pedro, meu irmão, compra livros". 9 Substituir outros sinais A vírgula não é egoísta. Atua em ambientes em que outros sinais atuariam. Uma mina de ouro para escritores, que descobrem veios de expressividade na alternância de vírgula, ponto, ponto e vírgula, dois-pontos, travessões, parênteses. Veja a passagem de Euclides: "O jagunço é menos teatralmente heroico; é mais tenaz; é mais resistente; é mais perigoso; é mais forte; é mais duro." Belo efeito, que teria diferente matiz com a vírgula: "O jagunço é menos teatralmente heroico, é mais tenaz, é mais resistente, é mais perigoso, é mais forte, é mais duro". Matiz distinto haveria com o uso de pontos: "O jagunço é menos teatralmente heroico. É mais tenaz. É mais resistente. É mais perigoso. É mais forte. É mais duro". Ao escritor compete a escolha adequada ao texto. 10 Ser usada com expressividade
A vírgula costuma ser certinha no comportamento, mas, vez por outra, por expressividade, pode surgir onde não devia, ou não surgir onde devia. Malícias do ofício! Foi o que fez Euclides, ao colocá-la para marcar pausa mecânica (também chamada respiratória) em "Mas no sul a força viva restante no temperamento dos que vinham de romper o mar imoto, não se delia num clima enervante."
Os sentidos da vírgula
Há casos em que a vírgula pode mudar o sentido da frase e gerar dúvidas. É verdade que a vírgula, como a crase, não nasceu para humilhar ninguém. Mas pode humilhar, sim. E até causar pequenos desastres de compreensão. Ou de incompreensão, dependendo do caso e do contexto, porque quem virgula mal em geral escreve mal por não entender bem a estrutura da frase.
1 Marcar inversões da ordem direta Quando a crise chegou, estavam desprevenidos. Embora achasse que não, disse que o amava. Depois da lua de mel, fugiu dele para não mais voltar.Quando o adjunto adverbial for representado por uma só palavra, a vírgula é dispensável, a menos que se queira acentuar o valor do advérbio: Hoje vamos passear no bosque. Melancolicamente se despediram. (Ou: "Melancolicamente, se despediram" /"Melancolicamente, despediram-se".)
Em explicações, retificações, ressalvas, continuações, aposições, vocativos, conclusões, inclusive oracionais: Aquele político, eterno candidato, se refugia na Câmara para não ir preso.
3 Marcar omissão do verbo já enunciado na oração anterior Ele foi de primeira classe; ela, de terceira. (Foi.) O marido gostava de balé; a mulher, de luta livre. (Gostava.)
4 Separar termos da mesma função em sequência, coordenados
Laranjas, limões, bananas; ladrões, traficantes, políticos; jogar, correr, disputar; primeiro, segundo, terceiro, quarto. A casa onde nasceu, a rua onde viveu, a cidade onde morreu. Ela deixou livros, discos, quadros, tapetes, saudades.
Proibição
Fora os quatro grupos de casos mais ou menos óbvios, é preciso acentuar dois casos fundamentais, já citados, de vírgulas absolutamente impróprias. 1 Jamais se separa por vírgula o sujeito (grifado nos exemplos) do predicado verbal, mesmo que o núcleo, modificado por adjuntos, esteja distante do verbo, destacado em negrito.
Para descobrir o sujeito pergunta-se ao verbo: o que ou quem.
O Luís come empadinhas engorduradas todos os dias. O Edgard gostou muito daquela garota robusta.
Rogério Chociay é pesquisador da Unesp, autor de Pontuação, Ponto a Ponto (editora Íbis, 2005) http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=11911 |
Pesquisar no Blog ou Web
segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
A soberania da vírgula
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário