O vício que dói no ouvido
É preciso cuidado para não repetir termos a todo momento nem tomar, por preciosismo, qualquer expressão como viciosa.
Leonardo Fuhrmann
A repetição crônica de palavras ou expressões mudou de status. Parte dos cientistas da linguagem deixou de usar o termo "vício" para condenar o uso exaustivo dos cacoetes, que parecem empestar de ruído a comunicação cotidiana, principalmente a oral. Em seu lugar, apontam para uma mudança de atitude do falante.
Vício é comportamento. Afinal, o uso repetitivo dessas muletas da fala cotidiana, clichês usados independentemente do contexto em que são pronunciados, tende a incomodar o ouvinte e a desvalorizar o conteúdo do que está sendo dito. Mas, como numa dependência de cigarros, não são fáceis de largar.
A gramática normativa tradicional usa a classificação de vício para agrupar diversos fenômenos diferentes, considerados desvios em relação ao padrão culto da língua, como por exemplo:
- Arcaísmo - uso de termos antiquados ("Encontre, por obséquio, minhas chaves");
- Ambiguidade - quando o sentido não fica claro, com enunciado com mais de um sentido ("O pai o filho adora" = quem adora quem?);
- Barbarismos - erros no uso das palavras: de pronúncia, grafia, morfologia, semântica e de estrangeirismos ("framengo", "sombrancelha", sale em vez de "à venda").
- Cacófato - sequência de palavras que provoca o som de uma expressão ridícula ou obscena ("Por razões de Estado");
- Colisão e hiato - proximidade ou repetição, respectivamente, de consoantes e vogais iguais em uma sequência ("O salário da secretária sempre será pago na sexta-feira").
- Eco - repetição da mesma terminação em prosa ("O acesso dado ao processo do réu confesso foi um retrocesso jurídico");
- Preciosismo - linguagem pretensamente culta;
- Plebeísmo - uso de gírias ou termos que demonstram falta de instrução ("tipo assim", "a nível de");
- Tautologia - repetição desnecessária de ideia ("Iphan restaura velho casarão"; "Governo cria novos empregos") ou termo já pronunciado (subir para cima, surpresa inesperada, acabamento final);
- Solecismo - desvios na construção sintática, de concordância, regência e colocação ("Viajar anexo", no sentido de viajar "ao lado de alguém"; "Fazem dias que viajei" contém erro de concordância);
Classificações como essa começam a ser, cada vez mais e por mais especialistas, consideradas insatisfatórias. Professor da Faculdade de Educação da USP, especializado nas relações entre linguagem e inconsciente, Claudemir Belintane é contrário à condenação sumária de usos apontados como vícios de linguagem, pois acredita que a própria classificação é ela mesma viciosa, por ser arcaica e tratar-se de preciosismo, características tradicionalmente classificáveis como muletas da comunicação oral. Essas tipificações condenam as expressões isoladas, independentemente do contexto. Mas um pleonasmo, bem usado, dá força a um enunciado e não se torna mera tautologia, como em Augusto dos Anjos: "As minhas roupas, quero até rompê-las".
Gagueira
Belintane diz que é preciso encontrar as causas e relações mais profundas no emprego de certas gírias crônicas, e não condenar de antemão o uso das expressões em si.
- No caso dos adolescentes, se o falante não expande sua fala e se prende à gíria, o problema é estudar o porquê dessa não expansão e não apenas pôr a culpa na expressão
Além de termos típicos dos adolescentes, o específico morador de grandes centros urbanos, Belintane aponta o uso de termos populares (como o "entende?", "veja bem!" e "como eu estava falando"), que, na fala pública, acabam por incomodar quando usados de forma muito repetitiva.
- Aí estamos diante é de uma "gagueira" que a repetição excessiva pode causar e, com isso, truncar ou simplificar a expressão - afirma.
A recomendação de Belintane a quem deseja evitar o chamado vício de linguagem passaria pela atenção redobrada à própria fala, aquele tomar cuidado de não transformar as expressões que usamos
O rei Pelé conhecido pelo uso vicioso de "entende" em suas frases: fenômeno universal
Sem controle
Como ocorre com dependentes químicos, o esforço deliberado e racional para livrar-se de um vício de linguagem nem sempre se revela suficiente de imediato. Para o filólogo Valter Kehdi, professor aposentado da USP, expressões são petrificadas na linguagem de pessoas que as usam a esmo, inconscientemente, mas a recorrência crônica a clichês seria provocada pela dificuldade de o falante construir conexões, de estabelecer a passagem entre um raciocínio e outro, uma sentença e outra, o que se pensa e é efetivamente dito.
- Há pessoas que usam, por exemplo, o adjetivo "formidável"
Para o professor Kehdi, quem quer evitar vícios de linguagem deve observar não só o emprego insistente e enfadonho dos termos que utiliza como atentar para a própria falta de imaginação nas construções e no uso do vocabulário.
Mestre em linguística pela USP e coautor do material didático de português do sistema Anglo de ensino, Eduardo Antonio Lopes afirma que o uso mecânico de termos inadequados ou fora de contexto não é mazela exclusiva de quem não teve boa formação cultural e linguística.
- Se um advogado bem formado usar a expressão "data vênia" em uma conversa fora dos tribunais, vai soar pedante e inadequado. A impressão do ouvinte é que ele não tem domínio sobre os recursos de linguagem, mesmo que banque o erudito. É uma falta de controle no uso da linguagem - exemplifica.
Lopes insiste em que a falha contida no chamado vício de linguagem está em quem usa um termo sem qualquer reflexão, automaticamente. O uso abusivo e estereotipado de uma expressão reforçaria aspectos negativos da forma de falar de uma pessoa. É o caso do já clássico "entende?", marca do fim das frases pronunciadas pelo ex-jogador Pelé.
- É como alguém usar a expressão "câmbio", comum nas conversas de rádio, em diálogos fora deste meio - compara.
A dica de Lopes é que a linguagem seja usada com os objetivos de fazer-se entender e de transmitir aos outros a imagem que você quer que eles tenham de você.
Fala e escrita
Kehdi, por sua vez, explica que o uso vicioso de certos termos, como "a nível de", é mais comum na linguagem falada porque esse tipo de discurso tende a ser mais improvisado do que o escrito, em que o usuário da língua se preocupa com a forma e pode se dar ao cuidado de reler o texto em busca de falhas, substituindo termos mal usados ou repetidos desnecessariamente.
Além disso, a mensagem em um escrito só é transmitida pelas palavras, o que exige precisão de uso. Há textos do Fernando Pessoa e do Machado de Assis, diz Kehdi, em que as palavras são suficientes para deixar clara a ironia. Já no discurso falado as expressões faciais e corporais e a entonação também servem para reforçar o tom irônico de uma fala.
Segundo o professor, a discrepância entre fala e escrita seria a razão pela qual não há regra objetiva de combate ao uso de clichês e vícios. O que é racionalmente controlável, ao papel, não o é tanto, ao pé do ouvido. A solução é prestar atenção à própria maneira de falar, com espírito atento à redundância crônica, e fazer autopoliciamento para evitar o uso excessivo de certas expressões.
Um exercício de autocontrole verbal pode ser o de habituar-se a caracterizar expressões de uso crônico, substantivando-as. Eduardo Lopes cita o exemplo do "tipo assim", comum entre jovens menos articulados, já usado de forma deliberada por quem deseja comunicar-se com a "tribo" adolescente.
- O uso da expressão carrega todo o prestígio ou desprestígio do grupo que o fala. Mas isso não impede que um interlocutor passe a usar esse termo no meio de uma palestra com adolescentes como uma forma de se mostrar mais próximo deles. Essa é a diferença de se ter um objetivo ao escolher as palavras - diz.
O uso calculado de um termo, em situações do gênero, poria a mente em alerta para expressões viciadas. Mas, segundo Belintane, esse "uso inteligente" do vício também está relacionado à capacidade de calibrar a linguagem à situação comunicativa. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva seria, para o professor, exemplo notável de que é possível manter e até ressaltar o talento discursivo mesmo com uso repetitivo de termos considerados viciosos.
- O discurso adequado é o discurso eficiente, que faz laço social, e o dele, com certeza, faz. O discurso ruim é aquela falação narcísica que se preocupa mais em polir a expressão do que transmitir uma mensagem com clareza. Um bom falante é aquele que se preocupa com a sua expressão, com os efeitos estéticos que consegue imprimir à fala e à escrita, mas sem ceder ao preciosismo ou ao arcaísmo das normas - diz.
Belintane considera que é sempre interessante ouvir quem circula bem por diferentes normas da língua.
- Um conferencista que, no meio de suas reflexões, faz questão de buscar na memória toda a potência de sua regionalidade, não só da cultura, mas das próprias variações que a língua experimenta em sua cidade natal; a companhia de pessoas assim é bem recomendável e pouco viciosa - observa o professor da USP.
Na compreensão do que seja um vício, os especialistas apressam-se em distinguir o fenômeno de outros que pareçam seus semelhantes. Eduardo Lopes, por exemplo, defende que a intenção pode ser um fator importante até para quem usa clichês ou bordões.
- O apresentador Chacrinha, um dos maiores comunicadores do país, criou bordões que estão até hoje na memória das pessoas. O colunista Zé Simão, da Folha de S. Paulo e da BandNews FM, usa diversas expressões, que viraram suas marcas. Assim também personagens de TV ficam marcados na memória das pessoas por conta de bordões - avalia.
Já o filólogo Valter Kehdi lembra das marcações repetitivas próprias ao meio em que uma comunicação é realizada. Cita conversas por telefone recheadas de expressões que acabam tendo uma função apenas no contexto específico do meio em que ocorrem. Muitas vezes, diz Kehdi, o interlocutor reage do outro lado da linha dizendo "sim" ou "sei" diversas vezes. Para o filólogo, esse interlocutor não está mostrando que concorda ou já conhece o assunto tratado, mas sinaliza que permanece em linha, ouvindo o que está sendo dito. A mesma reação, se usada de maneira tão repetitiva em uma conversa ao vivo, se tornaria estranha ou inadequada. A função do uso desses termos tem relação direta com o meio escolhido para a conversa.
Kehdi chama a atenção para as expressões que aparentemente não têm qualquer significado numa sentença e que na verdade podem servir para destacar parte do discurso ou reforçar um significado, em especial na linguagem falada. Aquilo que, no começo do século passado, o filólogo Manuel Said Ali Ida chamava de "expressões de situação".
- Em alguns casos, há uma elipse psicológica no discurso. Assim, na fala, o "mas" pode significar "mas como você soube disso?" ou o "agora" substitui o "a partir de agora" ou o "como vão ficar as coisas agora" e o "então" para dizer "então, como foi de viagem?".
Hipercorreção
Segundo ele, expressões como essas não podem ser consideradas erros nem vícios, pois têm uma função conativa (dá uma orientação ao destinatário). Para Kehdi, nenhuma função da linguagem existe separadamente ou em estado puro. É importante perceber que não só expressões de situação se tornam clichês.
Há as implicações éticas de um vício. Preocupadas em evitar o uso excessivo e desnecessário do gerúndio, conhecida como endorreia, muitos passam a evitar o uso dessa forma nominal do verbo mesmo quando é a mais adequada para apresentar uma ideia. Segundo Eduardo Lopes, mesmo quando sabem que a construção está correta, muitos interlocutores a evitam para não dar ao ouvinte a impressão de que houve má aplicação.
Lopes cita um exemplo da própria entrevista para mostrar o problema.
- Pedi a você que me ligasse após as 18 horas porque, das 16 horas às 17h30, eu estaria participando de uma reunião. Para dizer "estarei participando", o falante acaba deixando bem clara a ideia de gerúndio e, assim, mostra que a forma verbal não foi usada de forma inadequada na conversa. Acabei deixando claro o tempo da reunião para comprovar a necessidade do gerúndio - explica.
O gerúndio é usado para uma ação que percorre determinado espaço de tempo. Para Lopes, as críticas comuns a expressões inadequadas como "vamos estar enviando" acabam provocando temor, o que leva a uma hipercorreção - corrigir o que se considera erro mesmo quando não há erro. Tal atitude é ela mesma viciosa. Eduardo Lopes afirma que muitas formas consagradas passaram a ser discutidas também por causa dessa preocupação.
- Começou uma discussão se o correto é "risco de vida", como sempre se falou, ou "risco de morte". Mas você também diz que a "febre subiu" quando na verdade foi a temperatura que subiu e responde "tudo" quando alguém lhe pergunta se está "tudo bem" - explica Lopes.
Enrijecer um comportamento, mesmo o que se pretende corretivo, pode ser um erro de português tão grave quanto o próprio vício que se quis corrigir.
Revista da Língua Portuguesa.
http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=11749
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